quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Deusa Deméter

Deméter

 
Deusa e mãe da terra cultivada foi compreendida pelos antigos como um equivalente de guê méter, “mãe-terra”. Como se trata de uma deusa, cujo culto era elevado muito a sério por todos os helenos, da Grécia continental à Magna Grécia e desta à Grécia asiática, divido este texto em três partes: na primeira parte, focalizarei na história do culto a esta deusa; na segunda parte, exponho, de maneira simples, o mito de Deméter, comentando o rapto de Perséfone; e na terceira parte, falo sobre os Mistérios de Elêusis, complementados por um simples estudo da parte simbólica, uma pequena síntese acerca do poder fixação dos alimentos e o esboço de uma pesquisa sobre alimentação e sexualidade.
1ª parte: Culto a Deméter
Os cultos mais antigos de Deméter foram afogados pelas invasões dóricas, segundo o historiador Heródoto (484 – 408 A.E.C.), a partir do século XII A.E.C. Ficaram, no entanto, alguns vestígios dessa fase antiga, particularmente na Arcádia, onde a deusa estava associada ao primitivo Posídon, o Posídon-Cavalo, bem com em Elêusis, segundo se verá em seguida. Nos arredores de Telpussa, querendo escapar do deus, que a perseguia, disfarçou-se em égua, mas Posídon, tomando a forma de um garanhão, fê-la mãe do cavalo Aríon e de uma filha, cujo nome só os Iniciados conheciam. O povo chamava-a simplesmente de Déspoina, a Senhora. Foi por causa da cólera, provocada por essa violência de Posídon, que a mãe de Aríon passou a ser denominada também de Deméter-Erínis. Recebeu, igualmente, o epíteto de Lúsia (a que se banha), pelo fato de ter-se purificado dos contatos do deus-cavalo no rio Ládon. Perto da Figalia, ainda na Tessália, chamavam-na Mélaina, a Negra, porque, em seu ressentimento, cobriu-se com véus pretos e retirou-se para o fundo de uma caverna, onde sua estátua era encimada por uma cabeça de cavalo. Em Fêneo ainda havia traço de mistérios primitivos, celebrados num antro rochoso, onde o sacerdote tirava de um esconderijo uma máscara de Deméter, dita Kidária, cobrindo o rosto e ferindo o solo com um bastão, rito destinado a provocar a fertilidade e evocar as forças ctônias. O termo grego kídaris designa uma espécie de turbante e o sobrenome Kidária poderia derivar de máscara, mas kídaris significa, outrossim, uma dança de Arcádia e a arte figurada deixa entrever que um coro bárbaro de sobrevivência zoomórfica não era estranho a esse culto primitivo. Ainda na Arcádia, as duas deusas, a dupla Deméter-Senhora, tinham características acentuadas de Pótnia Theron, “Senhora das feras”, associadas ao mundo animal e á fertilidade dos campos. Na região da Licúria (a montanha dos lobos) sua companheira era uma Ártemis arcaica. À dupla se ofereciam frutos diversos e animais não degolados, mas despedaçados vivos.
Um mito cretense, recolhido por Hesíodo, atesta que a grande deusa se uniu a Iásion sobre um terreno lavrado três vezes e que dessa ligação nasceu Plûtos. Existem algumas reminiscências de uma hierogamia à época das semeaduras e a idéia desse tipo de união rústica se encontra talvez na Deméter de Olímpia, denominada Caminéia, isto é, “que está na terra”. Sob esse epíteto se viu uma divindade oracular, mas que acabou sendo relacionada com o antigo hábito, segundo o qual o camponês e sua esposa dormiam sobre a terra que deveria ser cultivada, a fim de provocar a vegetação. Homero, na Odisséia, sem mencionar Pluto, refere-se à mesma tradição, ao dizer que o herói Iásion foi fulminado por Zeus, cujo mito olímpico, mais tarde codificado pelo mesmo Hesíodo, faz de Zeus esposo de Deméter, que dele teria tido Kóre, Core, a Jovem, ou Perséfone.
Os sofrimentos por que passou a deusa, quando sua filha, com o consentimento e ajuda do pai, foi raptada por Hades, são relatados no importantíssimo Hino homérico a Deméter, composto lá pelos fins do século VII A.E.C. e que, salvo um ou outro pormenor, pode e deve ser considerado como o hièro lógos, o “discurso sagrado” do Santuário de Elêusis. Nele a deusa augusta da terra é proclamada a maior fonte de riqueza e alegria. Com efeito, quando Deméter recuperou, por dói terços do ano, a companhia de Perséfone, a deusa devolveu (karpòn pherésbion) o grão da vida, que ela própria, em sua cólera dolorosa, havia escondido. Confiou-o, em seguida, a Triptólemo, que o Hino menciona apena acidentalmente entre os chefes de Elêusis. Mais tarde este herói se tornará filho de Metarina e Céleo, rei de Elêusis. Triptólemo recebeu a missão sagrada de levar o grão da vida a todos os povos e ensinar-lhes a prática do trabalho. A esses dons a deusa de Elêusis acrescentou uma recompensa suprema: no templo que Céleo lhe mandou construir, exatamente no local em que se asilou, Deméter instituiu para sempre belos e augustos ritos, penhor de felicidade na vida e para além da morte. Além do mais, as “duas deusas”, mãe e filha, a todos os homens piedosos, que as cultuam, enviam-lhes Pluto, o deus da riqueza agrária. Deméter é, pois, a Terra-Mãe, a matriz universal e mais especificamente a mãe do grão, e sua filha Core o grão mesmo de trigo, alimento e semente, que escondida por certo tempo no seio da Terra, dela novamente brota em novos rebentos, o que, em Elêusis, fará da espiga o símbolo da imortalidade.

Pluto é a projeção dessa semente. Se verdadeiramente o deus da riqueza agrária ficou eclipsado no Hino a Deméter é pela evocação patética de Core perdida e depois “re-encontrada”, uma estreita relação sempre existiu, desde tempos imemoriais, entre os cultos agrários e a religião dos mortos, e é assim que o Rico em trigo, Pluto, acabou por confundir-se com outro rido, o Rico em hóspedes, que se comprimem no palácio infernal. Pois bem, esse rico em trigo, com uma desinência inédita, se transmutou, sob o vocábulo (Plúton), Plutão, num duplo eufemístico e cultural de Hades.

Fundamentalmente agrária, o culto a Deméter está vinculado ao ritmo das estações e ao ciclo da semeadura e colheita para produção do mais precioso dos cereais, o trigo.

Bem antes da fusão com Atenas e comparativamente ao que representavam para a pólis de Péricles as festas em honra de Atená, sem dúvida as festas mais antigas de Deméter celebravam-se em Elêusis com o nome Eleusínias. Tratava-se de um ato de reconhecimento pelo “fruto de Deméter”, “por causa do fruto”, diz laconicamente Aristóteles, acrescentando, ademais disso, que as disputas atléticas, realizadas na ocasião, eram os mais antigos jogos da Grécia. Enquanto os vencedores nas Panatenéias eram recompensados com óleo das oliveiras sagradas de Atená, os atletas campeões nas Eleusínias recebiam como prêmio medidas de trigo sagrado, colhido das planícies de raros, perto de Elêusis, onde, pela primeira vez, Triptólemo plantou a semente sagrada. Vinculadas à cultura do trigo e aos trabalhos por ela requeridos, as festas da deusa de Elêusis se realizavam em datas apropriadas ás condições climáticas de Hélade. As Eleusínias, por sua finalidade mesma, se comemoravam pelos fins da primavera. Os outros ritos, bem mais conhecidos, se escalonavam em três etapas: o trabalho de preparação da terra; a semeadura e a colheita. O rito sagrado da lavoura, relembrava o trabalho inicial de Triptólemo, cujo nome significa popularmente o que revolve a terra três vezes, como trí-polos, “terra trabalhada três vezes”. Esse rito é mencionado em Esquíron, nos confins ático-eleusínios e nas planícies de Raros, onde residia a família dos Budzýgai, “os que atrelam os bois”, que possuía o privilégio de levar a bom termo esse rito sagrado, arando a terra ou mimando simplesmente a lavra e, além do mais, tinha a incumbência de manter os bois sagrados destinados a tal finalidade. De igual natureza eram as Proerósias, “sacrifícios antes da lavra”, festas instituídas posteriormente por Atenas, para atender a uma resposta do Oráculo de Delfos, quando de uma fome geral. Não havia, ao que parece, nas Proesórias, mímica da lavra, mas oferendas propiciatórias anuais em Elêusis, em nome de todos os gregos. O rapto e a ausência, a descida de Perséfone não se processaram no inverno, mas no retorno, a presença, a subida, ocupavam as duas outras partes do ano. A grande deusa iniciava seu esperado retorno após a aradura, no mês Pianépsion (segunda metade de outubro), com as Tesmófiras, a festa das semeaduras, e era “presença total”, realmente, à época da festa das Clóias, quer dizer, do “verde”, no mês Posídeon (dezembro), quando, após as chuvas do outono, o trigo e a cevada de Deméter-Cloe cobriam os campos com um manto “verde” e aqui permanecia até a colheita da última primavera, nos últimos dias do mês de Targélion (fins de maio) e início do mês de Esquirofórion (junho).

A coincidência desta heortologia (calendário de festas) com o clima mediterrâneo atesta que se está em presença de elementos indígenas anteriores à chegada dos gregos na Península. Além do mais, se os nomes Deméter e Core são gregos, Perséfone, que designa Core, após o rapto dessa última, não tem etimologia indo-européia. Até mesmo certas variantes do vocábulo, Perephóneia, Periphóna, Phrséphassa, Pherrpephatta, Phersephóna mostram a dificuldade que os gregos tiveram para adaptá-lo em sua língua. Trata-se, ao que tudo indica, de palavra de origem mediterrânea.

Difundidas por todas as regiões do mundo helênico, as mais antigas festas de Deméter são as Tesmofórias, palavra que se compõe de thesmós, “instituição sagrada da lei” e o verbo phérein, “levar, produzir” e, em sentido figurado, “estatuir, estabelecer”. Deméter thesmophóros é portanto a “legisladora”, porque, tendo ensinado os homens a cultivar os campos, instituiu o casamento, fundando, assim, a sociedade civil. As Tesmofórias são, por conseguinte, a festa das “legisladoras”, em que se agradece a Deméter pelas últimas colheitas.

Atribuídas por Heródoto às filhas de Dânao, as Danaides, as Tesmofórias eram reservadas às mulheres casadas, pela analogia óbvia entre a fecundidade do seio materno e a fertilidade da terra, que as mulheres estão muito mais aptas a promover. Isto explica provavelmente a preeminência da mulher no sacerdócio de Elêusis, tanto mais quanto da cidade santa dos Mistérios a sacerdotisa de Deméter sempre teve as honras da Eponímia.

As Tesmofórias, que duravam três dias, eram celebradas no mês de Pianépsion, segunda metade de outubro, quando os “poceiros” retiravam das fossas os restos dos leitões que aí haviam sido lançados, segundo a prática, cuja causa foi a desventura do porcariço Eubuleu. Jogavam-se leitões em fossas profundas, contava-se, como recordação da manada de porcos de Eubuleu, quase toda tragada, quando a terra se abriu no momento do rapto de Core. Recolhiam-se, em seguida, os restos, que eram misturados a grãos e sementes diversas: tal mistura era colocada sobre os altares e depois espalhada pelos campos. Tratava-se, claro está, de um rito de adubagem sagrada.

O segundo dia festivo das Tesmofórias denominava-se Nestéia, que quer dizer o “dia do jejum”, estomacal e sexual. Em Atenas, as mulheres formavam uma grande procissão e dirigiam-se para o Pnix, a oeste da Acrópole e passavam o dia todo e cabanas feitas de ramos, sentadas sobre folhas de loureiro, cujas virtudes fecundantes eram muito exaltadas pelos antigos. O jejum e a atitude dessas mulheres eram uma evocação de Deméter, prostrada de dor pelo desaparecimento da filha. Esse dia considerado nefasto.

As comemorações do terceiro dia das Tesmofórias denominavam-se Kalliguéneia, que quer dizer, literalmente, “belas gerações”, ou seja, abundantes colheitas. Oferecia-se à deusa uma panspermia, como nas Antestérias dionisíacas, uma espécie de sopa com uma mistura de todas as espécies de sementes, uma vez que pân é todo, total e spérma é semente. As Kalliguéneia transcorriam numa atmosfera de grande alegria e as mulheres casadas, de todas as idades, se entregavam a uma liberdade de gestos e de linguagem que fariam corar Aristófanes! Essa mesma quebra de interditos e “desrepressão” se verificam nas Haloas. Também as Kalliguéneias tinham por objetivo provocar a fertilidade do ser humano e dos campos.

Um pouco mais tarde, após as chuvas do outono, se dúvida do mês Posêidon, em dezembro, quando o trigo e a cevada cobriam a terra de verde, celebravam-se as festas denominadas Cloe (Khloîa), a verdejante, em honra ainda de Deméter, em Atenas e Elêusis.

Nos fins de maio, início de junho, isto é, nos meses de Targélion e Esquirofórion, realizavam-se as Thalýsia, “florir, cobrir-se de folhas, flores e frutos”. Nas Talísias ofereciam-se à divindade as primícias da colheita, hábito já registrado em Homero, mas a propósito de Eneu, rei Cálidon, terrivelmente castigado, porque esqueceu de Ártemis, quando ofereceu as primícias aos outros deuses. Na época clássica, as Talísias eram propriamente uma festa da eira, em honra de Deméter, quando a ela se ofereciam os primeiros grãos da colheita. Teócrito, o grande poeta grego da época alexandrina, no Idílio 7, cujo título é exatamente Talísias, se inspira poeticamente da festa e diz que “Deméter está corada de espigas e de papoulas vermelhas”.

A derradeira festa de Deméter denomina-se Haloas, ou seja, em princípio, uma festividade da deusa “guardiã dos celeiros”, mas essas comemorações celebravam também a outro grande deus da vegetação, Dioniso, que, sob muitos aspectos, está ligado à mãe de Perséfone.

As Haloas se desdobravam, portanto, numa festa da uva, quando se realizava a segunda cava às vinhas, o adubamento das cepas e a degustação do vinho novo, cuja primeira fermentação já havia terminado. Como se tratava de uma festa de Deméter, embora extensiva a Dioniso, a presença da mulher, ao menos em algumas partes da festividade, conferia-lhe um regozijo especial e uma atmosfera de luxúria báquica. Boas apreciadoras também do néctar dioisíaco, as mulheres, mais que nas Kalliguéneia, entregavam-se à gracejos licenciosos e a gestos ousados, que a lei admitia e de que fala Aristóteles na Política (7, 1336 b 17), como assunto superado, por seu caráter ritual.

2ª parte: O mitologema de Deméter e Perséfone

De Homero a Pausânias multiplicaram-se as variantes deste mito.

Deusa maternal da Terra, sua personalidade é simultaneamente religiosa e mítica, bem diferente da deusa Gaia (Géia), concebida como elemento cosmogônico. Divindade da terra cultivada, a filha de Crono e Réia é essencialmente a deusa do trigo, tendo ensinado aos homens a arte de semeá-lo, colhê-lo e fabricar o pão. Tanto no mito quanto no culto, Deméter está indissoluvelmente quase sempre denominada simplesmente As Deusas. As aventuras e os sofrimentos das Deusas constituem o mito central, cuja significância profunda somente era revelada aos Iniciados nos Mistérios de Elêusis. Core crescia tranqüila e feliz entre as ninfas e em companhia de Ártemis e Atená, quando um dia seu tio Hades, que a desejava, a raptou com o auxílio de Zeus. O local varia muito, segundo as tradições: o mais correto seria a pradaria de Ena, na Sicília, mas o Hino homérico a Deméter fala vagamente da planície de Misa, nome de cunha místico, inteiramente desprovido de sentido geográfico. Outras variantes colocam-no ora em Elêusis, às margens do rio Cefiso, ora na Arcádia, no sopé do monte Cilene, onde se mostrava uma gruta, que dava acesso ao Hades, ora em Creta, bem perto de Cnossos. Core colhia flores e Zeus, para atraí-la, colocou um narciso ou um lírio às bordas de um abismo. Ao aproximar-se da flor, a Terra se abriu, Hades ou Plutão apareceu e a conduziu para o mundo ctônio.

Desde então começou para a deusa a dolorosa tarefa de procurar a filha, levando-a a percorrer o mundo inteiro, comum archote aceso em casa uma das mãos. No momento em que estava sendo arrastada para o abismo, Core deu um grito agudo e Deméter acorreu, mas não conseguiu vê-la, e nem tampouco perceber o que havia acontecido. Simplesmente a filha desaparecera. Durante nove dias e nove noites, sem comer, sem beber, sem se banhar, a deusa errou pelo mundo. No décimo dia encontrou Hécate, que também ouvira o grito e viu que a jovem estava sendo arrastada para algum lugar, mas não lhe foi possível reconhecer o raptor, cuja cabeça estava cingida com as sombras da noite. Somente Hélio (o Sol), que tudo vê, e que já, certa feita, denunciara os amores secretos de Ares e Afrodite, cientificou-a da verdade. Irritada contra Hades e Zeus, decidiu na mais retornar ao Olimpo, mas permanecer na terra, abdicando de suas funções divinas, até que lhe devolvessem a filha.

Sob o aspecto de uma velha, dirigiu-se a Elêusis e primeiro sentou-se sobre uma pedra, que passou, desde então, a chamar-se Pedra sem Alegria. Interrogada pelas filhas do rei local, Céleo, declarou chamar-se Doso e que escapara, há pouco, das mãos de piratas de que a levaram, à força, da ilha de Creta. Convidada para cuidar de Demofonte, filho recém-nascido da rainha Metanira, a deusa aceitou a incumbência. Ao penetrar no palácio, todavia, sentou-se num tamborete e, durante longo tempo, permaneceu em silêncio, com o rosto coberto por um véu, até que uma criada, Iambe, fê-la rir, com seus chistes maliciosos e gestos obscenos. Deméter não aceitou o vinho que lhe ofereceu Metanira, mas pediu que lhe preparassem uma bebida com sêmola de cevada, água e poejo, denominada kykeón, “agitar de modo a misturar, perturbar agitando”, onde cíceon, além de “mistura” significa também “agitação, perturbação”. Trata-se, ao que parece, de uma bebida mágica cujos efeitos não se conhecem bem.

Encarregada da educação do caçula Demofonte, “o que brilha entre o povo”, a deusa não lhe dava leite, mas após, esfregá-lo com ambrosia, o escondia, durante a noite, no fogo, “como se fora um tição”. A cada dia, o menino se tornava mais belo e parecido com um deus. Deméter realmente desejava torná-lo imortal e eternamente jovem. Uma noite, porém, Metanira descobriu o filho entre as chamas e começou a gritar desesperada. A deusa interrompeu o grande rito iniciático e exclamou pesarosa: “Homens ignorantes, insensatos, que não sabeis discernir o que há de bom ou de mal em vosso destino. Eis que tua loucura de levou à mais grave das faltas! Juro pela água implacável do Estige, pela qual juram também os deuses: eu teria feito de teu filho um ser eternamente jovem e isento da morte, outorgando-lhe um privilégio imorredouro. A partir de agora, no entanto não poderá escapar do destino da morte” (Hh. D., 256 – 262). Surgindo em todo seu esplendor, antes de deixar o palácio, que se lhe erguesse um grande templo, com um altar, onde ela pessoalmente ensinaria seus ritos aos humanos. Encarregou, em seguida, Triptólemo, irmãos mais velho de Demofonte, de difundir pelo mundo inteiro a cultura do trigo.
Construindo o santuário, Deméter recolheu-se ao interior do mesmo, consumida pela saudade de Perséfone. Provocada por ela, uma seca terrível se abateu pela terra. Em vão Zeus lhe mandou mensageiros, pedindo que regressasse ao Olimpo. A deusa respondeu com firmeza que não voltaria ao convívio dos Imortais e bem tampouco permitiria que a vegetação crescesse, enquanto não lhe entregassem a filha. Como a ordem do mundo estivesse em perigo, Zeus pediu a Plutão que devolvesse Perséfone. O rei dos Infernos curvou-se à vontade soberana do irmão, mas habilmente fez que a esposa colocasse na boca uma semente de romã e obrigou-a a engoli-la, o que a impedia de deixar a outra vida. Finalmente, chegou-se a um consenso: Perséfone passaria quatro meses com o esposo e oito com a mãe.

Reencontrada a filha, Deméter retornou ao Olimpo e a terra cobriu-se, instantaneamente, de verde. Antes de seu regresso, porém, a grande deusa, ensinou todos os seus mistérios ao rei Céleo, a seu filho Triptólemo, a Díocles e a Eumolpo “os belos ritos, os ritos augustos que é impossível transgredir, penetrar ou divulgar: o respeito pelas deusas é tão forte, que embarga a voz” (Hh. D., 476 – 479).

A instituição dos Mistérios de Elêusis explica-se, pois, pelo reencontra das duas deusas e como conseqüência do fracasso da imortalização de Demofonte. A esse respeito, comenta agudamente Mircea Eliade:

“Pode-se compara a história de Demofonte com os velhos ritos de relatam o trágico erro que, em certo momento da história primordial, anulou a possibilidade de imortalização do homem. Mas, nesse caso, não se trata do erro ou do ‘pecado’ de um antepassado mítico que perde para si e para seus descendentes a condição primeira de imortal. Demofonte não era uma personagem primordial; era o filho caçula de um rei. E pode-se interpretar a decisão de Deméter de imortalizá-lo como o desejo de ‘adotar’ um filho (que a consolaria da perda de Perséfone) e, ao mesmo tempo, como uma vingança contra Zeus e os Olímpicos. Deméter estava transformando um homem em deus. As deusas possuíam esse poder de outorgar a imortalidade aos humanos, e o fogo ou a cocção do neófito figuravam entre os meios mais reputados. Surpreendida por Metanira, Deméter não escondeu sua decepção diante da estupidez dos homens. Mas o hino não faz qualquer referência à eventual generalização dessa técnica de imortalização, isto é, a fundação de uma instituição suscetível de transformar os homens em deuses por intermédio do fogo”.

Na realidade, Deméter só se identificou e pediu que se lhe erguesse um templo após o fracasso da imortalização de Demofonte, mas somente transmitiu seus ritos secretos depois de seu reencontro com a filha. Não existe, pois, objetivamente, nenhuma relação entre a iniciação nos Mistérios e a cocção de Demofonte, interrompida por Metanira. O iniciado nos Mistérios não conseguia e nem pretendia a imortalidade. É bem verdade que, ao fim das cerimônias nos Mistérios, o templo inteiro era iluminado por milhares de archotes, mas esse clarão, “esse fogo”, simbolizava, tudo leva a crer, a iluminação interior dos iniciados e a certeza das luzes da outra vida. O pouco que se conhece das cerimônias secretas deixa claro que o mistério central envolvia a presença de duas deusas e que sua fundamentação era a morte simbólica, a descida de Perséfone e seu retorno triunfante, como a semente que morre no seio da terra e se transmuta em novos rebentos. E se através da iniciação a condição humana era modificada, isso se fazia num sentido bem diferente do da fracassada imortalização de Demofonte. O que os Mistérios prometiam era a bem-aventurança após a morte. Os textos a esse respeito são muito escassos, mas expressivos.

O próprio Hino a Deméter promete a felicidade para os Iniciados e indiretamente o castigo para aqueles que ignoram os Mistérios:



Feliz aquele que possui, entre os homens da terra, a visão destes Mistérios.
Ao contrário, aquele que não foi iniciado e aquele que não participou dos santos
ritos não terão, após a morte, nas trevas úmidas, a mesma felicidade do
iniciado.
(Hh. D., 480 – 482)
Em um de seus Trenos, fr. 6 (e não 10, como erradamente consta em Mircea Eliade) exclama o maior dos líricos da Hélade:



Feliz aquele que, antes de baixar á terra, contemplou este espetáculo. Ele
conhece qual é o fim da vida e também o começo, outorgado por Zeus.
Sófocles, fr. 753, o trágico maior, trouxe também a sua contribuição:



Bem-aventurados os mortais que, após terem contemplado os Mistérios, vão
descer à outra vida. Ali, somente eles viverão; os outros só terão
sofrimentos.
Na comédia de Aristófanes, As Rãs, 154 – 159, Héracles (Hércules, em Roma), ensinando a Baco o caminho que levava ao Hades, fala de um pequeno encontro de Dioniso com a alegria dos Iniciados na outra vida:

Héracles – Prosseguindo, envolver-te-á um sopro de flautas. Divisarás
uma esfusiante claridade, como aqui; encontrarás bosques de mirto, grupos
bem-aventurados de homens e mulheres e um estrepitoso bater de palmas.
Baco
– quem são estes?
Héracles – Os Iniciados.
[1]

Seja como for, como diz Mircea Eliade, o rapto, quer dizer, a “morte” simbólica de Perséfone, trouxe para os homens benefícios incalculáveis. Uma deusa olímpica, que passa a habitar apenas uma terça parte do ano o mundo dos mortos, encurta a distância entre os dois reinos: o Hades e o Olimpo. Como ponte entre os dois “mundos divinos”, podia intervir no destino dos homens mortais.

Os Mistérios de Elêusis vão ter exatamente por essência essa morte simbólica, projetava na morte e na ressurreição da semente.

3ª parte: os Mistérios de Elêusis

Acerca dos Mistérios de Elêusis o que se sabe é tão-somente o exterior e, mesmo assim, fragmentariamente. Os documentos literários e a arte figurada aludem particularmente à preparação das etapas da iniciação, o que, é claro, não exigia segredo. Assim mesmo Ésquilo, segundo Aristóteles, teria revelado, sem o querer, certos aspectos secretos relativos aos Mistérios e converter-lhes os adeptos, se não dissessem o que realmente acontecia, correriam o risco de ser desmentidos. Essas informações, porém têm que ser analisadas com muita prudência, porque, se de um lado são muito incompletas e reticentes, sem penetrar no âmago da questão, e a prudência assim o aconselhava, de outro, baseiam-se, não raro, em “mistérios tardios”, da época helenística. Em dois mil anos de funcionamento em Elêusis, é muito provável que os Mistérios tenham sofrido influências de outras correntes religiosas e que certas cerimônias se tenham modificados com o correr dos anos.
No tocante ás informações dos “pagãos”, também elas, e com muito mais razão, pecam pela base: abordam tão-só aspectos externos, quando não se baseiam em épocas tardias, e, pior ainda, quando não confundem Mistérios de Elêusis com Orfismo.



Aristófanes. As Rãs. Tradução de Junito de Souza Brandão. Rio de Janeiro, Ed. Espaço & Tempo, 1987.

Um comentário:

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